Criança coach financeira - A armadilha da autoajuda infantil: como o sonho de riqueza rápida está destruindo o futuro de crianças que nem sabem os riscos
- W. Gabriel de Oliveira
- 17 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Eu mal falo de coaches, porque tenho mais o que fazer. Mas como sou educador, tenho uma responsabilidade que vai além: criança coach é um problema. E estão cada vez mais aparecendo mais. A ascensão de conteúdos de autoajuda na internet, focados em prosperidade e enriquecimento rápido, tem capturado a atenção não apenas de adultos, mas também de crianças e adolescentes, criando um fenômeno social preocupante. O cenário atual, em que crianças são incentivadas a buscar notoriedade e riqueza, sem o esforço tradicional do estudo e do trabalho, desafia princípios básicos do desenvolvimento cognitivo e humano, configurando um verdadeiro colapso nos valores educacionais e psicológicos.

Desenvolvimento cognitivo e exposição prematura a ideologias de prosperidade
A infância e a adolescência são fases cruciais para o desenvolvimento cognitivo, período em que a construção de habilidades como pensamento crítico, capacidade de análise e processamento de informações é central (PIAGET, 1970). Quando crianças são expostas a conteúdos de autoajuda que priorizam a ideia de "enriquecimento fácil", há uma distorção no processo natural de aprendizagem, substituindo o desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas por uma visão simplista e imediatista de sucesso. Esse tipo de exposição pode, inclusive, prejudicar a formação do lobo pré-frontal - responsável pela tomada de decisões e pelo planejamento a longo prazo - que ainda está em desenvolvimento até os 25 anos (VYGOTSKY, 1978).
Adotar discursos de prosperidade e riqueza imediata na infância é negligenciar os estágios naturais do desenvolvimento, como apontado pelos clássicos Jean Piaget e Lev Vygotsky - Ah, e se você quer, por ventura, criticar as teses deles, precisará, no mínimo, ser tão ou mais profundos no embasamento, pesquisa, demosntrações e comprovações de hipóteses que seus estudos promoveram por décadas.
Esses teóricos reforçam que o aprendizado deve ser construído de forma gradual e sólida, com base em experiências concretas e de interação com o mundo real (PIAGET, 1970; VYGOTSKY, 1978). A pressão por sucesso rápido, promovida por influenciadores digitais e gurus de autoajuda, interfere nesse processo, levando crianças a acreditarem que a notoriedade e o dinheiro podem ser conquistados sem esforço, comprometendo o desenvolvimento de habilidades essenciais como paciência, resiliência e capacidade crítica - além, claro, de visão sociológica do mundo, já que elas viverão em sociedade e precisarão ser cidadãos (ou então, mais cedo ou mais tarde, sofrerão com reclusão ou até pena privativa de liberdade).
Sexualidade e imagem pessoal: o impacto de uma cultura de notoriedade
Outro aspecto relevante é o impacto no desenvolvimento sexual e na construção da autoimagem. Crianças e adolescentes, ao serem expostos a uma narrativa em que a popularidade digital e o sucesso financeiro se tornam métricas de valor pessoal, acabam internalizando padrões nocivos de autoestima (ERIKSON, 1968), o que podemos ilutrar hoje como o vínculo que tem ao desempenho em redes sociais e ao número de seguidores. Tal exposição precoce mina a construção de uma identidade saudável, baseada em valores como cooperação, empatia e autenticidade.
Além disso, essa dinâmica pode acelerar a erotização precoce, dado que muitas vezes a obtenção de notoriedade na internet está atrelada a aparências e comportamentos que, embora inadequados para a faixa etária, são amplamente promovidos por influenciadores.
Segundo estudos de Berger (2015), essa erotização e a distorção da imagem pessoal podem levar ao desenvolvimento de transtornos psicológicos, como ansiedade, depressão e distúrbios alimentares, fenômenos cada vez mais frequentes entre jovens usuários das redes sociais.
Autoajuda e destruição do papel educativo dos pais e responsáveis
Pais e responsáveis, contaminados por essa cultura de prosperidade fácil, tornam-se cúmplices no processo de deterioração mental e emocional dos seus filhos. Ao incentivarem ou permitirem que as crianças sigam esse caminho, eles abandonam seu papel fundamental como guias no desenvolvimento de valores sólidos e na formação de uma visão crítica sobre o mundo. Como observa Baumrind (1967), o papel dos pais é estabelecer limites e oferecer orientações para que as crianças se desenvolvam de maneira equilibrada e saudável.
Infelizmente, muitos pais estão sendo seduzidos pela promessa de que seus filhos podem se tornar "prodigiosos empreendedores digitais", participando de uma dinâmica tóxica em que a infância é transformada em uma mercadoria e o desenvolvimento infantil é negligenciado em favor da busca por visibilidade e lucro. Isso não apenas fragiliza os laços familiares, mas também compromete a construção de uma identidade adulta saudável, como afirma Papalia (2009) em seus estudos sobre desenvolvimento humano.
O prejuízo cognitivo, social e emocional
O impacto negativo dessa avalanche de autoajuda digital se manifesta em diferentes esferas. Cognitivamente, crianças expostas a esse tipo de conteúdo tendem a desenvolver uma visão distorcida da realidade, na qual o esforço, o estudo e o trabalho são vistos como irrelevantes, a não ser a visão deles, sobre o que eles fazem e dizem. Socialmente, elas são incentivadas a se isolar em bolhas de popularidade online, ignorando interações reais e significativas que são essenciais para o desenvolvimento social (BRONFENBRENNER, 1979).
Emocionalmente, o fracasso inevitável de não atingir os resultados prometidos pela autoajuda, como riqueza instantânea, pode gerar frustração, baixa autoestima e até crises de identidade.
O universo da autoajuda, quando direcionado a uma criança coach e adolescente coach, apresenta-se como uma bomba-relógio para o desenvolvimento cognitivo, sexual e emocional. As narrativas de prosperidade fácil, sem base acadêmica ou científica, contaminam pais e responsáveis, transformando crianças em vítimas de uma ideologia prejudicial e sem fundamentos. A busca por notoriedade e dinheiro, à custa da saúde mental e do desenvolvimento humano, não apenas compromete o futuro dessas crianças, mas também a construção de uma sociedade crítica, reflexiva e saudável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMRIND, Diana. Effects of Authoritative Parental Control on Child Behavior. Child Development, v. 37, n. 4, p. 887-907, 1967.
BERGER, Kathleen Stassen. Psicologia do Desenvolvimento. 9. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2015.
BRONFENBRENNER, Urie. The Ecology of Human Development. Harvard University Press, 1979.
ERIKSON, Erik H. Identity, Youth, and Crisis. New York: W. W. Norton & Company, 1968.
PAPALIA, Diane E. Desenvolvimento Humano. 12. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
PIAGET, Jean. A Construção do Real na Criança. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
VYGOTSKY, Lev. Mind in Society: The Development of Higher Psychological Processes. Harvard University Press, 1978.
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