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Delivery, Geração Z e o dilema da adultez: o que está no prato vai além do sabor




DELIVERY E ADULTEZ: A GERAÇÃO Z E O PARADOXO ENTRE IDENTIDADE E CONSUMO


A relação entre a Geração Z e o consumo é uma das mais fascinantes e contraditórias do mundo contemporâneo. No vídeo Delivery e Adultez: Conflitos da Geração Z, Michel Alcoforado, antropólogo e sócio-diretor da Consumoteca, nos oferece uma análise perspicaz sobre como escolhas alimentares transcendem o ato de comer, tornando-se um emblema de identidade, pertencimento e relevância social. Embora inovadora, isso merece uma abordagem crítica para aprofundar algumas de suas implicações.


A COMIDA COMO IDENTIDADE E INDEPENDÊNCIA


Alcoforado argumenta que, para a Geração Z, a comida é um símbolo de independência e identidade. Essa geração, ao escolher entre o "frango da mãe" e o lanche do iFood, enfrenta o dilema constante de validar suas escolhas em um mundo hiperconectado e saturado de estímulos.


Esse ponto encontra respaldo em autores como Claude Fischler, que, em sua obra L’Homnivore (1990), afirma que "a comida é uma das formas mais profundas de expressão cultural". A Geração Z, nesse sentido, reconstrói os significados culturais da alimentação, usando-a como um veículo para se posicionar socialmente.

A visão de Alcoforado pode inclusive ser expandida. Não é apenas o dilema da escolha que define a relação da Geração Z com a comida, mas também o seu caráter efêmero e performativo. Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida (2001), descreve como as identidades contemporâneas são fluidas e frequentemente construídas para o consumo público. Assim, o ato de compartilhar uma refeição no TikTok ou Instagram não é apenas sobre relevância entre pares, mas sobre participar de uma economia simbólica na qual o consumo é medido pela atenção que gera.


O IMPACTO DAS MARCAS E A "TIKTOKZABILIDADE"


Outro ponto destacado por Alcoforado é a transformação das marcas em narrativas. Para ele, a Geração Z não é definida pelo que consome, mas pelo que compartilha e conversa sobre o que consome. Essa perspectiva dialoga diretamente com o conceito de "economia da atenção", descrito por autores como Yves Citton em Pour une écologie de l’attention (2014).


Na economia da atenção, as marcas não competem apenas por vendas, mas pela capacidade de capturar e reter a atenção em um cenário de estímulos infinitos.

É importante também destacar o limite desse raciocínio. Embora as marcas estejam se adaptando para contar histórias e se tornarem "faláveis", há um custo social e psicológico nessa dinâmica. Estudos como os de Jean Twenge em iGen (2017) apontam que a hiperconectividade, característica central da Geração Z, está associada a níveis elevados de ansiedade e insatisfação. A dependência de validação social por meio do consumo não é apenas um comportamento, mas um sintoma de um sistema que explora vulnerabilidades emocionais para gerar lucro.


CONSUMO, DECISÕES E A ILUSÃO DE ESCOLHA


Um dos pontos mais instigantes do vídeo é a ideia de que a Geração Z vive atolada em um mar de escolhas. A sobrecarga de decisões, que Alcoforado relaciona ao consumo, foi amplamente estudada por Barry Schwartz em The Paradox of Choice (2004). Schwartz demonstra que, embora mais opções possam parecer desejáveis, elas frequentemente levam à paralisia e à insatisfação.


Há uma nuance que merece atenção. A escolha, na era digital, é frequentemente uma ilusão. Algoritmos de plataformas como iFood, Netflix e Instagram estruturam nossas opções com base em dados, direcionando as escolhas de maneira quase invisível. Assim, a autonomia que a Geração Z acredita exercer é mediada por sistemas que priorizam interesses comerciais, uma contradição que Alcoforado poderia ter explorado mais profundamente.

A RELAÇÃO ENTRE MERCADO E CULTURA


A proposta de Alcoforado de construir pontes entre academia e mercado merece reflexão. A antropologia aplicada ao consumo é uma ferramenta poderosa para entender comportamentos, mas corre o risco de se tornar cúmplice de um sistema que prioriza lucro sobre bem-estar. Como apontado por Naomi Klein em No Logo (1999), o marketing muitas vezes instrumentaliza a cultura para manipular consumidores, especialmente os mais jovens.


A provocação de Alcoforado é válida, mas deveria incluir uma dimensão ética: como equilibrar o entendimento dos comportamentos de consumo com a responsabilidade de não explorá-los de maneira predatória? Afinal, como ele mesmo afirma, toda decisão é política, inclusive as decisões das marcas que buscam se conectar com a Geração Z.

O vídeo Delivery e Adultez de Michel Alcoforado levanta questões cruciais sobre a relação entre consumo, identidade e independência na Geração Z. Sua análise, embora rica e instigante, pode ser complementada com reflexões sobre os impactos psicológicos do consumo performativo, os limites da autonomia em um mundo algoritmizado e os desafios éticos da antropologia do consumo.


Como Alcoforado bem pontua, a Geração Z redefine a relação com as marcas e com o ato de consumir. Mas talvez a pergunta mais urgente seja: como as marcas e a sociedade podem construir narrativas que não apenas capturem atenção, mas também promovam bem-estar e autonomia genuína? Afinal, no fim das contas, a relevância não deve estar apenas no prato ou na conversa que ele gera, mas no impacto que essa conversa tem no mundo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


CITTON, Yves. Pour une écologie de l’attention. Paris: Seuil, 2014.


FISCHLER, Claude. L’Homnivore: Le goût, la cuisine et le corps. Paris: Odile Jacob, 1990.


KLEIN, Naomi. No Logo. New York: Knopf Canada, 1999.


SCHWARTZ, Barry. The Paradox of Choice: Why More Is Less. New York: Harper Perennial, 2004.


TWENGE, Jean. iGen: Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy—and Completely Unprepared for Adulthood. New York: Atria Books, 2017.

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