Infância terceirizada: como o uso de telas está sabotando o futuro das crianças
- W. Gabriel de Oliveira
- 31 de out. de 2024
- 3 min de leitura

O uso de telas digitais deixou de ser uma escolha moderna e passou a ser uma constante alarmante na rotina de crianças e adolescentes. O que era para ser uma ferramenta de entretenimento e educação rapidamente se tornou uma bengala para famílias e um combustível para o desenvolvimento de sérios problemas emocionais e cognitivos. Hoje, especialistas e estudos alertam para os impactos devastadores de uma infância intermediada por dispositivos digitais, enquanto nós, como sociedade, seguimos empurrando crianças e adolescentes para a ilusão de um universo pixelado, onde o toque humano se dissolve entre notificações e animações de aplicativos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a UNICEF advertem sobre o uso excessivo de telas durante a infância, enfatizando que o desenvolvimento cerebral demanda interações reais, como o contato olho no olho e atividades que exijam presença e estímulo cognitivo direto (Organização Mundial da Saúde; Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2018). No entanto, a prática real entre as famílias é preocupante: dispositivos digitais têm se tornado substitutos silenciosos para a atenção parental, uma comodidade que, ao invés de entreter, adormece o potencial cognitivo das crianças e cria barreiras emocionais no processo de socialização. A psicóloga Sue Palmer ressalta que "estamos criando crianças que são menos capazes de lidar com as pressões da vida e de se relacionar com os outros", uma afirmação corroborada por estudos da Universidade de Alberta e da Unifesp, que indicam que crianças expostas a altos níveis de telas apresentam um aumento de crises emocionais e dificuldade em lidar com frustrações (Palmer, 2006).
A substituição das brincadeiras e interações sociais pela telinha contribui para a chamada "dependência digital". Esse fenômeno não é apenas uma questão de gosto; é uma dependência de dopamina induzida por algoritmos de redes sociais e aplicativos de entretenimento, projetados para engajar o usuário através de um ciclo de recompensa que alimenta o vício. Segundo o estudo de Naneix (2022), o uso excessivo de tecnologia cria uma saturação nos receptores dopaminérgicos, o que, assim como em dependências químicas, aumenta a necessidade de novas doses para alcançar o mesmo nível de satisfação. Isso se traduz em crianças cada vez mais conectadas e menos interessadas nas interações que constroem o núcleo da saúde emocional.
Outro aspecto insidioso do uso indiscriminado de telas é o comprometimento do sono e da saúde física. A Sociedade Brasileira de Pediatria (2021) alerta que o tempo de tela está associado ao aumento de obesidade infantil e à redução das horas de sono. Crianças privadas de sono adequado não só têm comprometimento em seu aprendizado, mas também apresentam aumento em problemas comportamentais e déficit de atenção. Em última instância, o uso de telas torna-se um substituto para os cuidados tradicionais, levando a um processo de "terceirização do cuidado" onde a criança é colocada na companhia de um tablet em vez de brincar com os pais ou interagir com amigos, o que Michel Desmurget chama de "suicídio cognitivo" em seu livro *A Fábrica de Cretinos Digitais* (Desmurget, 2020).
A solução, segundo especialistas, passa pelo resgate da ludicidade saudável e do contato humano. Precisamos de uma revolução na forma como integramos a tecnologia na vida infantil, e ela deve começar com os pais, que precisam parar de oferecer telas como calmantes digitais. Precisamos enxergar o uso excessivo de telas não como um mal inevitável, mas como um problema que pode e deve ser mitigado para garantir o desenvolvimento saudável de nossas crianças. O vício digital pode parecer conveniente agora, mas o preço a ser pago pelas gerações futuras será incalculável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Desmurget, M. (2020). A Fábrica de Cretinos Digitais: Os Perigos das Telas para as Nossas Crianças. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
Naneix, S. et al. (2022). "Digital Media and Dopamine Dependence in Adolescents". Journal of Neuroscience Research. Disponível em: [ScienceDirect](https://www.sciencedirect.com).
Organização Mundial da Saúde; Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2018). Nurturing Care Framework for Early Childhood Development: A framework for helping children survive and thrive to transform health and human potential. Genebra: OMS.
Palmer, S. (2006). Toxic Childhood: How The Modern World Is Damaging Our Children and What We Can Do About It. Londres: Orion Publishing.
Sociedade Brasileira de Pediatria. (2021). "Tempo de Tela e Impactos no Desenvolvimento Infantil". Boletim da SBP.
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