O perigo oculto das telas: como o excesso de tecnologia está destruindo o futuro das nossas crianças - e a culpa é nossa.
- W. Gabriel de Oliveira
- 29 de set. de 2024
- 5 min de leitura

O impacto devastador do excesso de telas no desenvolvimento infantil é uma realidade que, infelizmente, está no nosso dia a dia. E o alerta não é simplesmente achismo, é um alerta científico. A utilização de telas em excesso por crianças e adolescentes está criando uma crise silenciosa e devastadora para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social das futuras gerações. O que muitos pais e responsáveis tratam como uma ferramenta de distração ou entretenimento para suas crianças está, na verdade, comprometendo o futuro de seus filhos. A ciência tem demonstrado que o uso prolongado de dispositivos eletrônicos, especialmente na primeira infância, gera sérias consequências que vão desde crises de raiva até atrasos no desenvolvimento cerebral.
Estudos recentes, como o realizado pela Universidade de Alberta, no Canadá, em colaboração com o psiquiatra brasileiro Pedro Pan, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto Ame Sua Mente, revelam que crianças expostas a maior tempo de tela na primeira infância têm maior dificuldade de lidar com frustrações e de regular suas emoções. O estudo, que acompanhou crianças de três a quatro anos e meio durante o auge da pandemia (2020 a 2022), identificou que o uso excessivo de telas entre crianças de dois anos e meio estava diretamente relacionado a crises de raiva e explosões emocionais mais intensas aos quatro anos e meio (G1, 2024). Esse estudo é identifica também em Radesky et al. (2023), que explorou as associações entre o uso de dispositivos móveis para acalmar crianças e o impacto no desenvolvimento emocional e na função executiva. Ele sugere que o uso frequente desses dispositivos pode prejudicar o desenvolvimento de estratégias de regulação emocional em crianças, especialmente em meninos e crianças com temperamento mais elevado.
Pedro Pan explica que o uso de telas, em especial tablets e smartphones, cria uma espécie de "calmante digital", suprimindo a necessidade de interações interpessoais, essenciais para o desenvolvimento emocional saudável. Isso forma um ciclo vicioso em que as crianças, incapazes de se regular emocionalmente, recorrem cada vez mais às telas, o que agrava ainda mais a situação. "Tempo de tela gera menor controle emocional e regulação dos sentimentos na primeira infância, perpetuando essa cadeia negativa", afirma Pan (G1, 2024).
Michel Desmurget, neurocientista e autor do livro A Fábrica de Cretinos Digitais: Os Perigos das Telas para Nossas Crianças, também aborda a gravidade dessa questão. Desmurget aponta que o uso prolongado de telas não apenas atrasa o desenvolvimento da linguagem e da cognição, mas também interfere diretamente na formação neurológica das crianças. Ele destaca que crianças expostas a mais de duas horas de tela por dia apresentam uma redução significativa em seu QI* e têm dificuldades em desenvolver habilidades sociais e emocionais. "O desenvolvimento cerebral exige estímulos que a tela simplesmente não oferece, como o contato olho no olho e interações interpessoais", afirma Desmurget (DESMURGET, 2020).
Os impactos fisiológicos também são preocupantes. O estudo de Pan (G1, 2024) menciona que o tempo excessivo em frente às telas compromete não apenas a saúde mental, mas também a saúde física das crianças, prejudicando a qualidade do sono e promovendo o sedentarismo. Crianças que passam longas horas em frente a telas são mais propensas a distúrbios do sono, que afetam negativamente sua capacidade de concentração e aprendizado. Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria também apontam que o uso excessivo de dispositivos eletrônicos está associado ao aumento da obesidade infantil, já que a inatividade física resulta diretamente de horas passadas em frente a dispositivos eletrônicos (SBP, 2021).
O cenário se agrava quando pais e responsáveis utilizam as telas como forma de "terceirizar" o cuidado dos filhos. Ao invés de interações reais e atividades que estimulam o desenvolvimento cognitivo e emocional, muitas crianças são deixadas sozinhas com tablets e smartphones, o que Desmurget critica como uma "tragédia social". "Estamos criando uma geração de crianças emocionalmente desreguladas e cognitivamente limitadas, incapazes de lidar com frustrações e desafios da vida real", enfatiza Desmurget (DESMURGET, 2020).
Outro estudo longitudinal publicado no Journal of Early Childhood Research examinou os efeitos do uso de telas sobre a regulação emocional e o desempenho acadêmico em crianças de 4 a 8 anos. Os resultados mostraram uma correlação direta entre o tempo excessivo de tela aos 4 anos e problemas emocionais, como desregulação e baixo desempenho em matemática e alfabetização aos 8 anos. A pesquisa aponta que a participação ativa dos pais durante o uso de telas pode mitigar alguns dos impactos negativos, mas não reverte os danos causados pela exposição prolongada sem supervisão (CERNIGLIA et al., 2021).
Além dos problemas emocionais e cognitivos, o tempo excessivo de tela está associado a uma série de problemas comportamentais e de saúde física. Um estudo chamado Early childhood screen time as a predictor of emotional and behavioral problems in children at 4 years: a birth cohort study in China, publicado no Environmental Health and Preventive Medicine, encontrou uma forte associação entre o tempo de tela em crianças de até 4 anos e problemas comportamentais, como hiperatividade, dificuldades de interação social e problemas de conduta. Como o estudo investigou a relação entre o tempo de tela na primeira infância e problemas emocionais e comportamentais aos 4 anos de idade, a pesquisa reforçou a indicação de que o uso prolongado de telas desde os 6 meses é um fator de risco para problemas de hiperatividade e sintomas emocionais em crianças de 4 anos. (LIU et al., 2021).
A recomendação de especialistas é clara: o uso de telas deve ser moderado e, preferencialmente, supervisionado por adultos. A interação direta entre pais e filhos durante o uso de dispositivos eletrônicos pode mitigar alguns dos efeitos negativos, mas não substitui o contato humano essencial para o desenvolvimento saudável. Além disso, é urgente que políticas públicas sejam criadas para conscientizar sobre os perigos do uso indiscriminado de telas na infância, promovendo limites claros e alternativas saudáveis para o desenvolvimento infantil.
O excesso de tempo de tela é um problema de saúde pública que requer uma resposta imediata. Pais, educadores e legisladores precisam estar atentos aos perigos de terceirizar o cuidado e o entretenimento das crianças para os dispositivos eletrônicos. O futuro dessas gerações está em jogo, e a ciência é clara: o uso excessivo de telas compromete não apenas o desenvolvimento cerebral, mas também a saúde emocional e física das crianças. Não podemos permitir que o "calmante digital" substitua as interações humanas que são a base do desenvolvimento infantil saudável.
Referências bibliográficas
CERNIGLIA, L.; CIMINO, S.; AMMANITI, M. What Are the Effects of Screen Time on Emotion Regulation and Academic Achievements? A Three-Wave Longitudinal Study on Children from 4 to 8 Years of Age. Journal of Early Childhood Research, v. 19, n. 2, p. 145-160, 2021.
DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para nossas crianças. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2020.
G1. Por que exposição excessiva a telas pode provocar crises de raiva do seu filho. G1 Bem-Estar, 29 set. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2024/09/29/por-que-exposicao-excessiva-a-telas-pode-provocar-crises-de-raiva-do-seu-filho.ghtml. Acesso em: 29 set. 2024.
LIU, W.; WU, X.; HUANG, K.; YAN, S.; MA, L.; CAO, H.; GAN, H.; TAO, F. Early childhood screen time as a predictor of emotional and behavioral problems in children at 4 years: a birth cohort study in China. Environmental Health and Preventive Medicine, v. 26, n. 1, p. 1-9, 2021. DOI: 10.1186/s12199-020-00926-w
Radesky, J. S.; Kaciroti, N.; Weeks, H. M.; Schaller, A.; Miller, A. L. "Longitudinal Associations Between Use of Mobile Devices for Calming and Emotional Reactivity and Executive Functioning in Children Aged 3 to 5 Years." JAMA Pediatrics, v. 177, n. 1, p. 62-70, 2023. DOI: 10.1001/jamapediatrics.2022.4793
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA (SBP). Manual de orientação: Uso de telas por crianças e adolescentes. São Paulo, 2021.
Wartella, E.; Rideout, V.; Lauricella, A. R.; Kondrad, R. E. Digital media exposure in childhood and its effect on child development. Pediatrics, v. 140, n. 2, p. S97-S101, 2017.
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